Observação: Esta não é uma
biografia da vida de Maria,
mas um relato de
Humberto de Campos
feito sobre os
momentos culminantes de sua existência,
de que a Bíblia não
traz nenhuma informação.
MARIA
Junto da cruz, o vulto agoniado de Maria
produzia dolorosa e indelével impressão.
Com o pensamento ansioso e torturado, olhos
fixos no madeiro das perfídias humanas, a ternura materna regredia ao passado
em amarguradas recordações.
Ali estava, na hora extrema, o filho
bem-amado. Maria deixava-se ir na corrente infinda das lembranças. Eram as
circunstâncias maravilhosas em que o nascimento de Jesus lhe fora anunciado, a
amizade de Isabel, as profecias do velho Simeão, reconhecendo que a assistência
de Deus se tornara incontestável nos menores detalhes de sua vida. Naquele
instante supremo, revia a manjedoura, na sua beleza agreste, sentindo que a
Natureza parecia desejar redizer aos seus ouvidos o cântico de glória daquela
noite inolvidável. Através do véu espesso das lágrimas, repassou, uma por uma,
as cenas da infância do filho estremecido, observando o alarma interior das
mais doces reminiscências.
Nas menores coisas, reconhecia a
intervenção da Providência celestial; entretanto, naquela hora, seu pensamento
vagava também pelo vasto mar das mais aflitivas interrogações.
Que fizera Jesus por merecer tão amargas
penas? Não o vira crescer de sentimentos imaculados, sob o calor de seu
coração? Desde os mais tenros anos, quando o conduzia à fonte tradicional de
Nazaré, observava o carinho fraterno que dispensava a todas as criaturas.
Frequentemente, ia buscá-lo nas ruas empedradas, onde a sua palavra carinhosa
consolava os transeuntes desamparados e tristes. Viandantes misérrimos vinham a
sua casa modesta louvar o filhinho idolatrado, que sabia distribuir as bênçãos
do Céu. Com que enlevo recebia os hóspedes inesperados que suas mãos minúsculas
conduziam à carpintaria de José!... Lembrava-se bem de que, um dia, a divina
criança guiara a casa dois malfeitores publicamente reconhecidos como ladrões
do vale de Mizhep.
E era de ver-se a amorosa solicitude com
que seu vulto pequenino cuidava dos desconhecidos, como se fossem seus irmãos.
Muitas vezes, comentara a excelência daquela virtude santificada, receando pelo
futuro de seu adorável filhinho.
Depois do caricioso ambiente doméstico, era
a missão celestial, dilatando-se em colheita de frutos maravilhosos. Eram
paralíticos que retomavam os movimentos da vida, cegos que se reintegravam nos
sagrados dons da vista, criaturas famintas de luz e de amor que se saciavam na
sua lição de infinita bondade.
Que profundos desígnios haviam conduzido
seu filho adorado à cruz do suplício?
Uma voz amiga lhe falava ao Espírito,
dizendo das determinações insondáveis e justas de Deus, que precisam ser
aceitas para a redenção divina das criaturas.
Seu coração rebentava em tempestades de
lágrimas irreprimíveis; contudo, no santuário da consciência, repetia a sua
afirmação de sincera humildade: “Faça-se na escrava a vontade do Senhor!”
De alma angustiada, notou que Jesus
atingira o último limite dos padecimentos inenarráveis. Alguns dos populares
mais exaltados multiplicavam as pancadas, enquanto as lanças riscavam o ar, em
ameaças audaciosas e sinistras. Ironias mordazes eram proferidas a esmo,
dilacerando-lhe a alma sensível e afetuosa.
Em meio de algumas mulheres compadecidas,
que lhe acompanhavam o angustioso transe, Maria reparou que alguém lhe pousara
as mãos, de leve, sobre os ombros.
Deparou-se-lhe a figura de João que,
vencendo a pusilanimidade criminosa em que haviam mergulhado os demais
companheiros, estendia-lhe os braços amorosos e reconhecidos. Silenciosamente,
o filho de Zebedeu abraçou-se àquele triturado coração maternal. Maria
deixou-se enlaçar pelo discípulo querido e ambos, ao pé do madeiro, em gesto
súplice, buscaram ansiosamente a luz daqueles olhos misericordiosos, no cúmulo
dos tormentos. Foi aí que a fronte do divino supliciado se moveu vagarosamente,
revelando perceber a ansiedade daquelas duas almas em extremo desalento.
“Meu filho! Meu amado filho!“, exclamou a
mártir, em aflição diante da serenidade daquele olhar de melancolia
intraduzível.
O Cristo pareceu meditar no auge de suas
dores, mas, como se quisesse demonstrar, no instante derradeiro, a grandeza de
sua coragem e a sua perfeita comunhão com Deus, replicou com significativo movimento
dos olhos vigilantes:
- “Mãe, eis aí teu filho!“
E dirigindo-se, de modo especial, com um
leve aceno, ao apóstolo, disse:
- “Filho, eis aí tua mãe!”
Maria envolveu-se no véu de seu pranto
doloroso, mas o grande evangelista compreendeu que o Mestre, na sua derradeira
lição, ensinava que o amor universal era o sublime coroamento de sua obra.
Entendeu que, no futuro, a claridade do Reino de Deus revelaria aos homens a
necessidade da cessação de todo egoísmo e que, no santuário de cada coração,
deveria existir a mais abundante cota de amor, não só para o círculo familiar,
senão também para todos os necessitados do mundo, e que no templo de cada
habitação permaneceria a fraternidade real, para que a assistência recíproca se
praticasse na Terra, sem serem precisos os edifícios exteriores, consagrados a
uma solidariedade claudicante.
Por muito tempo, conservaram-se ainda ali,
em preces silenciosas, até que o Mestre, exânime, fosse arrancado à cruz, antes
que a tempestade mergulhasse a paisagem castigada de Jerusalém num dilúvio de
sombras.
Após a separação dos discípulos, que se
dispersaram por lugares diferentes, para a difusão da Boa Nova, Maria
retirou-se para a Bataneia, onde alguns parentes mais próximos a esperavam com
especial carinho.
Os anos começaram a rolar, silenciosos e
tristes, para a angustiada saudade de seu coração.
Tocada por grandes dissabores, observou
que, em tempo rápido, as lembranças do filho amado se convertiam em elementos
de ásperas discussões, entre os seus seguidores. Na Bataneia, pretendia-se
manter uma certa aristocracia espiritual, por efeito dos laços consanguíneos
que ali a prendiam, em virtude dos elos que a ligavam a José. Em Jerusalém,
digladiavam-se os cristãos e os judeus, com veemência e acrimônia. Na Galileia,
os antigos cenáculos simples e amoráveis da Natureza estavam tristes e
desertos.
Para aquela mãe amorosa, cuja alma digna
observava que o vinho generoso de Caná se transformara no vinagre do martírio,
o tempo assinalava sempre uma saudade maior no mundo e uma esperança cada vez
mais elevada no céu.
Sua vida era uma devoção incessante ao rosário
imenso da saudade, às lembranças mais queridas. Tudo que o passado feliz
edificara em seu mundo interior revivia na tela de suas lembranças, com
minúcias somente conhecidas do amor, e lhe alimentavam a seiva da vida.
Relembrava o seu Jesus pequenino, como
naquela noite de beleza prodigiosa, em que o recebera nos braços maternais,
iluminado pelo mais doce mistério.
Figurava-se-lhe escutar ainda o balido das
ovelhas que vinham, apressadas acercar-se do berço que se formara de improviso.
E aquele primeiro beijo, feito de carinho e
de luz? As reminiscências envolviam a realidade longínqua de singulares belezas
para o seu coração sensível e generoso. Em seguida, era o rio das recordações
desaguando, sem cessar, na sua alma rica de sentimentalidade e ternura. Nazaré
lhe voltava à imaginação, com as suas paisagens de felicidade e de luz. A casa
singela, a fonte amiga, a sinceridade das afeições, o lago majestoso e, no meio
de todos os detalhes, o filho adorado, trabalhando e amando, no erguimento da
mais elevada concepção de Deus, entre os homens da Terra. De vez em quando,
parecia vê-lo em seus sonhos repletos de esperança. Jesus lhe prometia o júbilo
encantador de sua presença e participava da carícia de suas recordações.
A esse tempo, o filho de Zebedeu, tendo
presentes as observações que o Mestre lhe fizera da cruz, surgiu na Bataneia,
oferecendo àquele espírito saudoso de mãe o refúgio amoroso de sua proteção.
Maria aceitou o oferecimento, com satisfação imensa.
E João lhe contou a sua nova vida.
Instalara-se definitivamente em Éfeso, onde as ideias cristãs ganhavam terreno
entre almas devotadas e sinceras. Nunca olvidara as recomendações do Senhor e,
no íntimo, guardava aquele título de filiação como das mais altas expressões de
amor universal para com aquela que recebera o Mestre nos braços veneráveis e
carinhosos. Maria escutava-lhe as confidências, num misto de reconhecimento e
de ventura.
João continuava a expor-lhe os seus planos
mais insignificantes. Levá-la-ia consigo, andariam ambos na mesma associação de
interesses espirituais. Seria seu filho desvelado, enquanto receberia de sua
alma generosa a ternura maternal, nos trabalhos do Evangelho. Demorara-se a
vir, explicava o filho de Zebedeu, porque lhe faltava uma choupana, onde se
pudessem abrigar; entretanto, um dos membros da família real de Adiabene,
convertido ao amor do Cristo, doara-lhe uma casinha pobre, ao sul de Éfeso,
distando três léguas aproximadamente da cidade. A habitação simples e pobre
demorava num promontório, de onde se avistava o mar. No alto da pequena colina,
distante dos homens e no altar imponente da Natureza, reunir-se-iam ambos para
cultivar a lembrança permanente de Jesus. Estabeleceriam um pouso e refúgio aos
desamparados, ensinariam as verdades do Evangelho a todos os Espíritos de
boa-vontade e, como mãe e filho, iniciariam uma nova era de amor, na comunidade
universal.
Maria aceitou alegremente.
Dentro de breve tempo, instalaram-se no
seio amigo da Natureza, em frente do oceano. Éfeso ficava pouco distante;
porém, todas as adjacências se povoavam de novos núcleos de habitações alegres
e modestas. A casa de João, ao cabo de algumas semanas, transformou-se num
ponto de assembleias adoráveis, onde as recordações do Messias eram cultuadas
por espíritos humildes e sinceros.
Maria externava as suas lembranças. Falava
dele com maternal enternecimento, enquanto o apóstolo comentava as verdades
evangélicas, apreciando os ensinos recebidos. Vezes inúmeras, a reunião somente
terminava noite alta, quando as estrelas tinham maior brilho. E não foi só.
Decorridos alguns meses, grandes fileiras de necessitados acorriam ao sítio
singelo e generoso. A notícia de que Maria descansava, agora, entre eles,
espalhara um clarão de esperança por todos os sofredores. Ao passo que João
pregava na cidade as verdades de Deus, ela atendia, no pobre santuário
doméstico, aos que a procuravam exibindo-lhe suas úlceras e necessidades.
Sua choupana era, então, conhecida pelo
nome de “Casa da Santíssima”.
O fato tivera origem em certa ocasião,
quando um miserável leproso, depois de aliviado em suas chagas, osculou-lhe as
mãos, reconhecidamente murmurando:
- “Senhora, sois a mãe de nosso Mestre e
nossa Mãe Santíssima!”
A tradição criou raízes em todos os
espíritos. Quem não lhe devia o favor de uma palavra maternal nos momentos mais
duros? E João consolidava o conceito, acentuando que o mundo lhe seria
eternamente grato, pois fora pela sua grandeza espiritual que o Emissário de
Deus pudera penetrar a atmosfera escura e pestilenta do mundo para balsamizar
os sofrimentos da criatura. Na sua humildade sincera, Maria se esquivava às
homenagens afetuosas dos discípulos de Jesus, mas aquela confiança filial com
que lhe reclamavam a presença era para sua alma um brando e delicioso tesouro
do coração. O título de maternidade fazia vibrar em seu espírito os cânticos
mais doces. Diariamente, acorriam os desamparados, suplicando a sua assistência
espiritual. Eram velhos trôpegos e desenganados do mundo, que lhe vinham ouvir
as palavras confortadoras e afetuosas, enfermos que invocavam a sua proteção,
mães infortunadas que pediam a bênção de seu carinho.
- “Minha mãe, dizia um dos mais aflitos,
como poderei vencer as minhas dificuldades? Sinto-me abandonado na estrada
escura da vida".
Maria lhe enviava o olhar amoroso da sua
bondade, deixando nele transparecer toda a dedicação enternecida de seu
espírito maternal.
“Isso também passa!", dizia ela
carinhosamente, "só o Reino de Deus é bastante forte para nunca passar de
nossas almas, como eterna realização do amor celestial.”
Seus conceitos abrandavam a dor dos mais
desesperados, desanuviavam o pensamento obscuro dos mais acabrunhados.
A igreja de Éfeso exigia de João a mais
alta expressão de sacrifício pessoal, pelo que, com o decorrer do tempo, quase
sempre Maria estava só, quando a legião humilde dos necessitados descia o
promontório desataviado, rumo aos lares mais confortados e felizes. Os dias e
as semanas, os meses e os anos passaram incessantes, trazendo-lhe as lembranças
mais ternas. Quando sereno e azulado, o mar lhe fazia voltar à memória o
Tiberíades distante. Surpreendia no ar aqueles perfumes vagos que enchiam a
alma da tarde, quando seu filho, de quem nem um instante se esquecia, reunindo
os discípulos amados, transmitia ao coração do povo as louçanias da Boa Nova. A
velhice não lhe acarretara nem cansaços nem amarguras. A certeza da proteção
divina lhe proporcionava ininterrupto consolo.
Como quem transpõe o dia em labores
honestos e proveitosos, seu coração experimentava grato repouso, iluminado pelo
luar da esperança e pelas estrelas fulgurantes da crença imorredoura. Suas
meditações eram suaves colóquios com as reminiscências do filho muito amado.
Súbito, recebeu notícias de que um período
de dolorosas perseguições se havia aberto para todos os que fossem fiéis à
doutrina do seu Jesus divino. Alguns cristãos banidos de Roma traziam a Éfeso
as tristes informações. Em obediência aos éditos mais injustos, escravizavam-se
os seguidores do Cristo, destruíam-se-lhes os lares, metiam-nos a ferros nas
prisões. Falava-se de festas públicas, em que seus corpos eram dados como
alimento a feras insaciáveis, em horrendos espetáculos.
Então, num crepúsculo estrelado, Maria
entregou-se às orações, como de costume, pedindo a Deus por todos aqueles que
se encontrassem em angústias do coração, por amor de seu filho.
Embora a soledade do ambiente, não se
sentia só: uma como força singular lhe banhava a alma toda. Aragens suaves
sopravam do oceano, espalhando os aromas da noite que se povoava de astros
amigos e afetuosos e, em poucos minutos, a lua plena participava, igualmente,
desse concerto de harmonia e de luz.
Enlevada nas suas meditações, Maria viu
aproximar-se o vulto de um pedinte. "Minha mãe", exclamou o
recém-chegado, como tantos outros que recorriam ao seu carinho —, "venho
fazer-te companhia e receber a tua bênção".
Maternalmente, ela o convidou a entrar,
impressionada com aquela voz que lhe inspirava profunda simpatia. O peregrino
lhe falou do céu, confortando-a delicadamente. Comentou as bem-aventuranças
divinas que aguardam a todos os devotados e sinceros filhos de Deus, dando a
entender que lhe compreendia as mais ternas saudades do coração. Maria
sentiu-se empolgada por tocante surpresa. Que mendigo seria aquele que lhe
acalmava as dores secretas da alma saudosa, com bálsamos tão dulçorosos? Nenhum
lhe surgira até então para dar; era sempre para pedir alguma coisa. No entanto,
aquele viandante desconhecido lhe derramava no íntimo as mais santas
consolações. Onde ouvira noutros tempos aquela voz meiga e carinhosa?! Que
emoções eram aquelas que lhe faziam pulsar o coração de tanta carícia? Seus
olhos se umedeceram de ventura, sem que conseguisse explicar a razão de sua
terna emotividade. Foi quando o hóspede anônimo lhe estendeu as mãos generosas
e lhe falou com profundo acento de amor:
- “Minha mãe, vem aos meus braços!”
Nesse instante, fitou as mãos nobres que se
lhe ofereciam, num gesto da mais bela ternura. Tomada de comoção profunda, viu
nelas duas chagas, como as que seu filho revelava na cruz e, instintivamente,
dirigindo o olhar ansioso para os pés do peregrino amigo, divisou também aí as
úlceras causadas pelos cravos do suplício. Não pôde mais. Compreendendo a
visita amorosa que Deus lhe enviava ao coração, bradou com infinita alegria:
- “Meu filho! meu filho! as úlceras que te
fizeram!. . .“
E precipitando-se para ele, como mãe
carinhosa e desvelada, quis certificar-se, tocando a ferida que lhe fora
produzida pelo último lançaço, perto do coração.
Suas mãos ternas e solícitas o abraçaram na
sombra visitada pelo luar, procurando sofregamente a úlcera que tantas lágrimas
lhe provocara ao carinho maternal. A chaga lateral também lá estava, sob a
carícia de suas mãos. Não conseguiu dominar o seu intenso júbilo. Num ímpeto de
amor, fez um movimento para se ajoelhar. Queria abraçar-se aos pés do seu Jesus
e osculá-los com ternura. Ele, porém, levantando-a, cercado de um halo de luz
celestial, ajoelhou-se-lhe aos pés e, beijando-lhe as mãos, disse em carinhoso
transporte:
- “Sim, minha mãe, sou eu!... Venho
buscar-te, pois meu Pai quer que sejas no meu reino a Rainha dos Anjos. .
."
Maria cambaleou, tomada de inexprimível
ventura. Queria dizer da sua felicidade, manifestar seu agradecimento a Deus;
mas o corpo como que se lhe paralisara, enquanto aos seus ouvidos chegavam os
ecos suaves da saudação do Anjo, qual se a entoassem mil vozes cariciosas, por
entre as harmonias do céu.
No outro dia, dois portadores humildes
desciam a Éfeso, de onde regressaram com João, para assistir aos últimos
instantes daquela que lhes era a devotada Mãe Santíssima.
Maria já não falava. Numa inolvidável
expressão de serenidade, por longas horas ainda esperou a ruptura dos
derradeiros laços que a prendiam à vida material.
A alvorada desdobrava o seu formoso leque
de luz quando aquela alma eleita se elevou da Terra, onde tantas vezes chorara
de júbilo, de saudade e de esperança.
Não mais via seu filho bem-amado, que,
certamente, a esperaria com as boas vindas no seu reino de amor; mas, extensas
multidões de entidades angélicas a cercavam cantando hinos de glorificação.
Experimentando a sensação de se estar
afastando do mundo, desejou rever a Galileia com os seus sítios preferidos.
Bastou a manifestação de sua vontade para que a conduzissem à região do lago de
Genesaré, de maravilhosa beleza. Reviu todos os quadros do apostolado de seu
filho e, só agora, observando do alto a paisagem, notava que o Tiberíades, em
seus contornos suaves, apresentava a forma quase perfeita de um alaúde.
Lembrou-se, então, de que naquele instrumento da Natureza Jesus cantara o mais
belo poema de vida e amor, em homenagem a Deus e à humanidade. Aquelas águas
mansas, filhas do Jordão marulhoso e calmo, haviam sido as cordas sonoras do
cântico evangélico.
Dulcíssimas alegrias lhe invadiam o coração
e já a caravana espiritual se dispunha a partir, quando Maria se lembrou dos
discípulos perseguidos pela crueldade do mundo e desejou abraçar os que
ficariam no vale das sombras, à espera das claridades definitivas do Reino de
Deus. Emitindo esse pensamento, imprimiu novo impulso às multidões espirituais
que a seguiam de perto. Em poucos instantes, seu olhar divisava uma cidade
soberba e maravilhosa, espalhada sobre colinas enfeitadas de carros e
monumentos que lhe provocavam assombro. Os mármores mais ricos esplendiam nas
magnificentes vias públicas, onde as liteiras patrícias passavam sem cessar,
exibindo pedrarias e peles, sustentadas por misérrimos escravos.
Mais alguns momentos e seu olhar descobria
outra multidão guardada a ferros em escuros calabouços. Penetrou os sombrios
cárceres do Esquilino, onde centenas de rostos amargurados retratavam
padecimentos atrozes. Os condenados experimentaram no coração um consolo
desconhecido.
Maria se aproximou de um a um, participou
de suas angústias e orou com as suas preces, cheias de sofrimento e confiança.
Sentiu-se mãe daquela assembleia de torturados pela injustiça do mundo.
Espalhou a claridade misericordiosa de seu Espírito entre aquelas fisionomias
pálidas e tristes. Eram anciães que confiavam no Cristo, mulheres que por ele
haviam desprezado o conforto do lar, jovens que depunham no Evangelho do Reino
toda a sua esperança. Maria aliviou-lhes o coração e, antes de partir,
sinceramente desejou deixar-lhes nos Espíritos abatidos uma lembrança perene.
Que possuía para lhes dar? Deveria suplicar a Deus para eles a liberdade?! Mas,
Jesus ensinara que com ele todo jugo é suave e todo fardo seria leve,
parecendo-lhe melhor a escravidão com Deus do que a falsa liberdade nos desvãos
do mundo. Recordou que seu filho deixara a força da oração como um poder
incontrastável entre os discípulos amados. Então, rogou ao Céu que lhe desse a
possibilidade de deixar entre os cristãos oprimidos a força da alegria. Foi
quando, aproximando-se de uma jovem encarcerada, de rosto descarnado e
macilento, disse-lhe ao ouvido:
- “Canta, minha filha! Tenhamos bom
ânimo!... Convertamos as nossas dores da Terra em alegrias para o Céu!"
A triste prisioneira nunca saberia
compreender o porquê da emotividade que lhe fez vibrar subitamente o coração.
De olhos extáticos, contemplando o firmamento luminoso, através das grades
poderosas, ignorando a razão de sua alegria, cantou um hino de profundo e
enternecido amor a Jesus, em que traduzia sua gratidão pelas dores que lhe eram
enviadas, transformando todas as suas amarguras em consoladoras rimas de júbilo
e esperança. Daí a instantes, seu canto melodioso era acompanhado pelas
centenas de vozes dos que choravam no cárcere, aguardando o glorioso
testemunho.
Logo, a caravana majestosa conduziu ao
Reino do Mestre a bendita entre as mulheres e, desde esse dia, nos tormentos
mais duros, os discípulos de Jesus têm cantado na Terra, exprimindo o seu bom
ânimo e a sua alegria, guardando a suave herança de nossa Mãe Santíssima.
Por essa razão, irmãos meus, quando ouvirdes
o cântico nos templos das diversas famílias religiosas do Cristianismo, não vos
esqueçais de fazer no coração um brando silêncio, para que a Rosa Mística de
Nazaré espalhe aí o seu perfume!