Rodolfo Calligaris, da
obra: “As Leis morais” - 8a edição. Rio de Janeiro, RJ:FEB, 1998.
Escusam-se muitos de não poderem ser
caridosos, alegando precariedade de bens, como se a caridade se reduzisse a dar
de comer aos famintos, dar de beber aos sedentos, vestir os nus e proporcionar
um teto aos desabrigados.
Além dessa caridade, de ordem material,
outra existe - a moral, que não implica o gasto de um centavo sequer e, não
obstante, é a mais difícil de ser praticada.
Exemplos? Eis alguns:
Seríamos caridosos se, fazendo bom uso de
nossas forças mentais, vibrássemos ou orássemos diariamente em favor de quantos
saibamos acharem-se enfermos, tristes ou oprimidos, sem excluir aqueles que
porventura se considerem nossos inimigos.
Seríamos caridosos se, em determinadas
situações, nos fizéssemos intencionalmente cegos para não vermos o sorriso
desdenhoso ou o gesto disprezivo de quem se julgue superior a nós.
Seríamos caridosos se, com sacrifício de
nosso valioso tempo, fôssemos capazes de ouvir, sem enfado, o infeliz que nos
deseja confiar seus problemas íntimos, embora sabendo de antemão nada podermos
fazer por ele, senão dirigir-lhe algumas palavras de carinho e solidariedade.
Seríamos caridosos se, ao revés,
soubéssemos fazer-nos momentâneamente surdos quando alguém, habituado a
escarnecer de tudo e de todos, nos atingisse com expressões irônicas ou
zombeteiras.
Seríamos caridosos se, disciplinando nossa
língua, só nos referíssemos ao que existe de bom nos seres e nas coisas, jamais
passando adiante notícias que, mesmo sendo verdadeiras, só sirvam para
conspurcar a honra ou abalar a reputação alheia.
Seríamos caridosos se, embora as
circunstâncias a tal nos induzissem, não suspeitássemos mal de nossos
semelhantes, abstendo-nos de expender qualquer juízo apressado e temerário
contra eles, mesmo entre os familiares.
Seríamos caridosos se, percebendo em nosso
irmão um intento maligno, o aconselhassemos a tempo, mostrando-lhe o erro e
despersuadindo o de o levar a efeito.
Seríamos caridosos se, privando-nos, de vez
em quando, do prazer de um programa radiofônico ou de T.V. de nosso agrado,
visitássemos pessoalmente aqueles que, em leitos hospitalares ou de sua
residência, curtem prolongada doença e anseiam por um pouco de atenção e afeto.
Seríamos caridosos se, embora essa atitude
pudesse prejudicar nosso interesse pessoal, tomássemos, sempre, a defesa do
fraco e do pobre, contra a prepotência do forte e a usura do rico.
Seríamos caridosos se, mantendo
permanentemente uma norma de proceder sereno e otimista, procurássemos criar em
torno de nós uma atmosfera de paz, tranquilidade e bom humor.
Seríamos caridosos se, vez por outra,
endereçássemos uma palavra de aplauso e de estimulo às boas causas e não
procurássemos, ao contrário, matar a fé e o entusiasmo daqueles que nelas se
acham empenhados.
Seríamos caridosos se deixássemos de
postular qualquer benefício ou vantagem, desde que verificássemos haver outros
direitos mais legítimos a serem atendidos em primeiro lugar.
Seríamos caridosos se, vendo triunfar
aqueles cujos méritos sejam inferiores aos nossos, não os invejássemos e nem
lhes desejássemos mal.
Seríamos caridosos se não desdenhássemos
nem evitássemos os de má vida, se não temêssemos os salpicos de lama que os
cobrem e lhes estendêssemos a nossa mão amiga, ajudando-os a levantar-se e limpar-se.
Seríamos caridosos se, possuindo alguma
parcela de poder, não nos deixássemos tomar pela soberba, tratando, os
pequeninos de condição, sempre com doçura e urbanidade, ou, em situação
inversa, soubéssemos tolerar, sem ódio, as impertinências daqueles que ocupam
melhores postos na paisagem social.
Seríamos caridosos se, por sermos mais
inteligentes, não nos irritássemos com a inépcia daqueles que nos cercam ou nos
servem.
Seríamos caridosos se não guardássemos
ressentimento daqueles que nos ofenderam ou prejudicaram, que feriram o nosso
orgulho ou roubaram a nossa felicidade, perdoando-lhes de coração.
Seríamos caridosos se reservássemos nosso
rigor apenas para nós mesmos, sendo pacientes e tolerantes com as fraquezas e
imperfeições daqueles com os quais convivemos, no lar, na oficina de trabalho
ou na sociedade.
E assim, dezenas ou centenas de outras
circunstâncias poderiam ainda ser lembradas, em que, uma amizade sincera, um
gesto fraterno ou uma simples demonstração de simpatia, seriam expressões
inequívocas da maior de todas as virtudes.
Nós, porém, quase não nos apercebemos
dessas oportunidades que se nos apresentam, a todo instante, para fazermos a
caridade.
Porquê?
É porque esse tipo de caridade não transpõe
as fronteiras de nosso mundo interior, não transparece, não chama a atenção,
nem provoca glorificações.
Nós traímos, empregamos a violência,
tratamos ou outros com leviandade, desconfiamos, fazemos comentários de má fé,
compartilhamos do erro e da fraude, mostramo-nos intolerantes, alimentamos
ódios, praticamos vinganças, fomentamos intrigas, espalhamos inquietações,
desencorajamos iniciativas nobres, regozijamo-nos com a impostura, prejudicamos
interesses alheios, exploramos os nossos semelhantes, tiranizamos subalternos e
familiares, desperdiçamos fortunas no vício e no luxo, transgredimos, enfim,
todos os preceitos da Caridade, e, quando cedemos algumas migalhas do que nos
sobra ou prestamos algum serviço, raras vezes agimos sob a inspiração do amor
ao próximo, via de regra fazemo-lo por mera ostentação, ou por amor a nós
mesmos, isto é, tendo em mira o recebimento de recompensas celestiais.
Quão longe estamos de possuir a verdadeira
caridade!
Somos, ainda, demasiadamente egoístas e
miseravelmente desprovidas de espírito de renúncia para praticá-la.
Mister se faz, porém, que a exercitemos,
que aprendamos a dar ou sacrificar algo de nós mesmos em benefício de nossos
semelhantes, porque "a caridade é o cumprimento da Lei."
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