O consagrado
escritor Humberto de Campos encontra em Jerusalém,
às margens do
Jordão, o até hoje incompreendido Judas Iscariotes.
Com ele
conversa sobre a condenação de Jesus e realiza esclarecedora
entrevista,
ditada a Chico Xavier, em Pedro Leopoldo, em 19/04/ 1935.
Leiamo-la.
Nas margens caladas do Jordão, não
longe talvez do lugar sagrado, onde o Precursor batizou Jesus Cristo, divisei
um homem sentado sobre uma pedra. De sua expressão fisionômica irradiava-se uma
simpatia cativante.
- Sabe quem é este? - murmurou
alguém aos meus ouvidos. - Este é Judas.
- Judas?!...
- Sim. Os espíritos apreciam, às
vezes, não obstante o progresso que já alcançaram, volver atrás, visitando os sítios
onde se engrandeceram ou prevaricaram, sentindo-se momentaneamente
transportados aos tempos idos. Então mergulham o pensamento no passado,
regressando ao presente, dispostos ao heroísmo necessário do futuro. Judas
costuma vir a Terra, nos dias em que se comemora a Paixão de Nosso Senhor,
meditando nos seus atos de antanho...
Aquela figura de homem
magnetizava-me. Eu não estou ainda livre da curiosidade do repórter, mas entre
as minhas maldades de pecador e a perfeição de Judas existia um abismo. O meu
atrevimento, porém, e a santa humildade do seu coração ligaram-se para que eu o
atravessasse, procurando ouvi-lo.
- O senhor é, de fato, o ex-filho
de Iscariotes? - perguntei.
- Sim, sou Judas - respondeu
aquele homem triste, enxugando uma lágrima nas dobras de sua longa túnica. - Como
o Jeremias, das Lamentações, contemplo às vezes esta Jerusalém arruinada,
meditando no juízo dos homens transitórios...
- E uma verdade tudo quanto reza o
Novo Testamento com respeito à sua personalidade na tragédia da condenação de
Jesus?
- Em parte... Os escribas que
redigiram os evangelhos não atenderam às circunstâncias e as tricas políticas
que acima dos meus atos predominaram na nefanda crucificação. Pôncio Pilotos e
o tetrarca da Galiléia, além dos seus interesses individuais na questão, tinham
ainda a seu cargo salvaguardar os interesses do Estado romano, empenhado em
satisfazer as aspirações religiosas dos anciãos judeus. Sempre a mesma história.
O Sanedrim desejava o reino do céu pelejando por Jeová, a ferro e fogo; Roma
queria o reino da Terra. Jesus estava entre essas forças antagônicas com a sua
pureza imaculada. Ora, eu era um dos apaixonados pelas idéias socialistas do
Mestre, porém o meu excessivo zelo pela doutrina me fez sacrificar o seu
fundador. Acima dos corações, eu via a política, única arma com a qual poderia
triunfar e Jesus não obteria nenhuma vitória. Com as suas teorias nunca poderia
conquistar as rédeas do poder, já que, no seu manto e pobre, se sentia possuído
de um santo horror à propriedade. Planejei então uma revolta surda como se
projeta hoje em dia na Terra a queda de um chefe de Estado. O Mestre passaria a
um plano secundário e eu arranjaria colaboradores para uma obra vasta e enérgica
como a que fez mais tarde Constantino Primeiro, o Grande, depois de vencer Maxêncio
às portas de Roma, o que, aliás, apenas serviu para desvirtuar o Cristianismo.
Entregando, pois, o Mestre, a Caifás, não julguei que as coisas atingissem um
fim tão lamentável e, ralado de remorsos, presumi que o suicídio era a única
maneira de me redimir aos seus olhos.
- E chegou a salvar-se pelo
arrependimento?
- Não. Não consegui. O remorso é
uma força preliminar para os trabalhos reparadores. Depois da minha morte trágica,
submergi-me em séculos de sofrimento expiatório da minha falta. Sofri horrores
nas perseguições infligidas em Roma aos adeptos da doutrina de Jesus, e as
minhas provas culminaram em uma fogueira inquisitorial, onde, imitando o Mestre,
fui traído, vendido e usurpado. Vítima da felonia e da traição, deixei na Terra
os derradeiros resquícios do meu crime, na Europa do século XV. Desde esse dia,
em que me entreguei por amor do Cristo a todos os tormentos e infâmias que me
aviltavam, com resignação e piedade pelos meus verdugos, fechei o ciclo das
minhas dolorosas reencarnações na Terra, sentindo na fronte o ósculo de perdão
da minha própria consciência...
- E está hoje meditando nos dias
que se foram... - pensei com tristeza.
- Sim... estou recapitulando os
fatos como se passaram. E agora, irmanado com Ele, que se acha no seu luminoso
Reino das Alturas que ainda não é deste mundo, sinto nestas estradas o sinal de
seus divinos passos. Vejo-O ainda na cruz entregando a Deus o seu destino...
Sinto a clamorosa injustiça dos companheiros que O abandonaram inteiramente e
me vem uma recordação carinhosa das poucas mulheres que O ampararam no doloroso
transe... Em todas as homenagens a Ele prestadas, eu sou sempre a figura
repugnante do traidor... Olho complacentemente os que me acusam sem refletir se
podem atirar a primeira pedra... Sobre o meu nome pesa a maldição milenária,
como sobre estes sítios cheios de miséria e de infortúnio. Pessoalmente, porém,
estou saciado de justiça, porque já fui absolvido pela minha consciência no
tribunal dos suplícios redentores.
Quanto ao Divino Mestre -
continuou Judas com os seus prantos - infinita é a sua misericórdia e não só
para comigo, porque, se recebi trinta moedas, vendendo-O aos seus algozes, há
muitos séculos Ele está sendo criminosamente vendido no mundo a grosso e a
retalho, por todos os preços, em todos os padrões do ouro amoedado...
- E verdade - concluí - e os novos
negociadores do Cristo não se enforcam depois de vendê-LO.
Judas afastou-se tomando a direção
do Santo Sepulcro e eu, confundido nas sombras invisíveis para o mundo, vi que
no céu brilhavam algumas estrelas sobre as nuvens pardacentas e tristes,
enquanto o Jordão rolava na sua quietude como um lençol de águas mortas,
procurando um mar morto.
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