Emmanuel, da obra "Paulo e Estevão"
psicografia de Francisco Cândido Xavier
Quando deu acordo de si, a noite
havia fechado de todo. O céu oriental resplandecia de estrelas. Ventos suaves
sopravam de longe, refrescando-lhe a fronte iacandescida. Acomodou-se como
pôde, entre as pedras agrestes, sem coragem de eximir-se ao silêncio da
Natureza amiga. Não obstante prosseguir no curso de suas amargas reflexões,
sentia-se mais calmo. Confiou ao Mestre as preocupações acerbas, pediu o
remédio da sua misericórdia e procurou manter-se em repouso. Após a prece
ardente, cessou de chorar, figurando-se-lhe que uma força superior e invisível
lhe balsamizava as chagas da alma opressa.
Breve, em doce quietude do
cérebro dolorido, sentiu que o sono começava a empolgá-lo. Suavíssima sensação
de repouso proporcionava-lhe grande alívio. Estaria dormindo? Tinha a
impressão de haver penetrado uma região de sonhos deliciosos. Sentia-se ágil e
feliz. Tinha a impressão de que fora arrebatado a uma campina tocada de luz
primaveril, isenta e longe deste mundo. Flores brilhantes, como feitas de névoa
colorida, desabrochavam ao longo de estradas maravilhosas, rasgadas na região
banhada de claridades indefiníveis. Tudo lhe falava de um mundo diferente. Aos
seus ouvidos toavam harmonias suaves, dando idéia de cavatinas executadas ao
longe, em harpas e alaúdes divinos. Desejava identificar a paisagem,
definir-lhe os contornos, enriquecer observações, mas um sentimento profundo de
paz deslumbrava-o inteiramente. Devia ter penetrado um reino maravilhoso,
porqüanto os portentos espirituais que se patenteavam a seus olhos excediam
todo entendimento.
Mal não havia despertado desse
deslumbramento, quando se sentiu presa de novas surpresas com a aproximação de
alguém que pisava de leve, acercando-se de mansinho. Mais alguns instantes, viu
Estevão e Abigail à sua frente, jovens e formosos, envergando vestes tão
brilhantes e tão alvas que mais se assemelhavam a peplos de neve translúcida.
Incapaz de traduzir as sagradas
comoções de sua alma, Saulo de Tarso ajoelhou-se e começou a chorar.
Os dois irmãos, que voltavam a
encorajá-lo, aproximaram-Se com generoso sorriso.
— Levanta-te, Saulo! — disse
Estevão com profunda bondade.
— Que é isso? Choras? — perguntou
Abigail em tom blandicioso. — Estarias desalentado quando a tarefa apenas
começa?
O moço tarsense, agora de pé,
desatou em pranto convulsivo. Aquelas lágrimas não eram somente um desabafo do
coração abandonado no mundo. Traduziam um júbilo infinito, uma gratidão imensa
a Jesus, sempre pródigo de proteção e benefícios. Quis aproximar-se, oscular
as mãos de Estevão, rogar perdão para o nefando passado, mas foi o mártir do
“Caminho” que, na luz de sua ressurreição gloriosa, aproximou-se do ex-rabino
e o abraçou efusivamente, como se o fizesse a um irmão amado. Depois,
beijando-lhe a fronte, murmurou com ternura:
— Saulo, não te detenhas no
passado! Quem haverá, no mundo, isento de erros? Só Jesus foi puro!...
O ex-discípulo de Gamaliel
sentia-se mergulhado em verdadeiro oceano de venturas. Queria falar das suas
alegrias infindas, agradecer tamanhas dádivas, mas indômita emoção lhe selava
os lábios e confundia o coração. Amparado por Estevão, que lhe sorria em silêncio,
viu Abigail mais formosa que nunca, recordando-lhe as flores da primavera na
casa humilde do caminho de Jope. Não pôde furtar-se às reflexões do homem,
esquecer os sonhos desfeitos, lembrando-os, acima de tudo, naquele glorioso
minuto da sua vida. Pensou no lar que poderia ter constituído; no carinho com
que a jovem de Corinto lhe cuidaria dos filhos afetuosos; no amor
insubstituível que sua dedicação lhe poderia dar. Mas, compreendendo-lhe os
mais íntimos pensamentos, a noiva espiritual aproximou-se, tomou-lhe a destra
calejada nos labores rudes do deserto e falou comovidamente:
— Nunca nos faltará um lar...
Tê-lo-emos no coração de quantos vierem à nossa estrada. Quanto aos filhos,
temos a família imensa que Jesus nos legou em sua misericórdia... Os filhos do
Calvário são nossos também... Eles estão em toda parte, esperando a herança do
Salvador.
O moço tarsense entendeu a
carinhosa advertência, arquivando-a no imo do coração.
— Não te entregues ao desalento —
continuou Abigail, generosa e solícita —; nossos antepassados conheceram o
Deus dos Exércitos, que era o dono dos triunfos sangrentos, do ouro e da prata
do mundo; nós, porém, conhecemos o Pai, que é o Senhor de nosso coração. A Lei
nos destacava a fé, pela riqueza das dádivas materiais nos sacrifícios; mas o
Evangelho nos conhece pela confiança inesgotável e pela fé ativa ao serviço do
Todo-Poderoso. É preciso ser fiel a Deus, Saulo! Ainda que o mundo inteiro se
voltasse contra ti, possuirias o tesouro inesgotável do coração fiel. A paz
triunfante do Cristo é a da alma laboriosa, que obedece e confia... Não tornes
a recalcitrar contra os aguilhões. Esvazia-te dos pensamentos do mundo. Quando
hajas esgotado a derradeira gota da posca dos enganos terrenos, Jesus encherá
teu espírito de claridades imortais!...
Experimentando infindo consolo,
Saulo chegava a perturbar-se pela incapacidade de articular uma frase. As
exortações de Abigail calar-lhe-iam para sempre. Nunca mais permitiria que o
desânimo se apossasse dele. Enorme esperança represava-se, agora, em seu
íntimo. Trabalharia para o Cristo em todos os lugares e circunstâncias. O
Mestre sacrificara-se por todos os homens. Dedicar-lhe a existência
representava um nobre dever. Enquanto formulava estes pensamentos, recordou a
dificuldade de harmonizar-se com as criaturas. Encontraria lutas. Lembrou a
promessa de Jesus, de que estaria presente onde houvesse irmãos reunidos em seu
nome. Mas tudo lhe pareceu subitamente difícil naquela rápida operação
intelectual. As sinagogas combatiam-se entre si. A própria igreja de Jerusalém
tendia, novamente, às influências judaizantes. Foi aí que Abigail respondeu,
de novo, aos seus apelos íntimos, exclamando com infinito carinho:
— Reclamas companheiros concordes
contigo nas edificações evangélicas. Mas é preciso lembrar que Jesus não os
teve. Os apóstolos não puderam concordar com o Mestre senão com o auxílio do
Céu, depois da Ressurreição e do Pentecostes. Os mais amados dormiam, enquanto
Ele, agoniado, orava no horto. Uns negaram-no, outros fugiram na hora decisiva.
Concorda com Jesus e trabalha. O caminho para Deus está subdividido em
verdadeira infinidade de planos. O espírito passará sozinho de uma esfera para
outra. Toda elevação é difícil, mas somente aí encontramos a vitória real.
Recorda a “porta estreita” das lições evangélicas e caminha. Quando seja
oportuno, Jesus chamará ao teu labor os que possam concordar contigo, em seu
nome. Dedica-te ao Mestre em todos os instantes de tua vida. Serve-o com
energia e ternura, como quem sabe que a realização espiritual reclama o
concurso de todos os sentimentos que enobreçam a alma.
Saulo estava enlevado. Não
poderia traduzir as sensações cariciosas que lhe represavam no coração tomado
de inefável contentamento. Esperanças novas bafejavam-lhe a alma. Em sua
retina espiritual desdobrava-se radioso futuro. Quis mover-se, agradecer a
dádiva sublime, mas a emoção privava-o de qualquer manifestação afetiva.
Entretanto, pairava-lhe no espírito uma grande interrogação. Que fazer,
doravante, para triunfar? Como completar as noções sagradas que lhe competia
exemplificar praticamente, sem anotação de sacrifícios? Deixando perceber que
lhe ouvia as mais secretas interpelações, Abigail adiantou-se, sempre
carinhosa:
— Saulo, para certeza da vitória
no escabroso caminho, lembra-te de que é preciso dar: Jesus deu ao mundo
quanto possuía e, acima de tudo, deu-nos a compreensão intuitiva das nossas
fraquezas, para tolerarmos as misérias humanas...
O moço tarsense notou que
Estevão, nesse ínterim, se despedia, endereçando-lhe um olhar fraterno.
Abigail, por sua vez,
apertava-lhe as mãos com imensa ternura. O ex-rabino desejaria prolongar a
deliciosa visão para o resto da vida, manter-se junto dela para sempre;
contudo, a entidade querida esboçava um gesto de amoroso adeus. Esforçou-se,
então, por catalogar apressadamente suas necessidades espirituais, desejoso
de ouvi-la relativamente aos problemas que o defrontavam. Ansioso de aproveitar
as mínimas parcelas daquele glorioso, fugaz minuto, Saulo alinhava mentalmente
grande número de perguntas. Que fazer para adquirir a compreensão perfeita dos
desígnios do Cristo?
— Ama! — respondeu Abigail
espontaneamente.
Mas, como proceder de modo a
enriquecermos na virtude divina? Jesus aconselha o amor aos próprios inimigos.
Entretanto, considerava quão difícil devia ser semelhante realização. Penoso
testemunhar dedicação, sem o real entendimento dos outros. Como fazer para que
a alma alcançasse tão elevada expressão de esforço com Jesus-Cristo?
— Trabalha! — esclareceu a noiva
amada, sorrindo bondosamente.
Abigail tinha razão. Era
necessário realizar a obra de aperfeiçoamento interior. Desejava ardentemente
fazê-lo. Para isso insulara-se no deserto, por mais de mil dias consecutivos.
Todavia, voltando ao ambiente do
esforço coletivo, em cooperação com antigos companheiros, acalentava sadias
esperanças que se converteram em dolorosas perplexidades.
Que providências adotar contra o
desânimo destruidor?
— Espera! — disse ela ainda, num
gesto de terna solicitude, como quem desejava esclarecer que a alma deve estar
pronta a atender ao programa divino, em qualquer circunstância, extreme de
caprichos pessoais.
Ouvindo-a, Saulo considerou que a
esperança fora sempre a companheira dos seus dias mais ásperos. Saberia
aguardar o porvir com as bênçãos do Altíssimo. Confiaria na sua misericórdia.
Não desdenharia as oportunidades do serviço redentor. Mas... os homens? Em
toda parte medrava a confusão nos espíritos. Reconhecia que, de fato, a
concordância geral em torno dos ensinamentos do Mestre Divino representava uma
das realizações mais difíceis, no desdobramento do Evangelho; mas, além disso,
as criaturas pareciam igualmente desinteressadas da verdade e da luz. Os
israelitas agarravam-se à Lei de Moisés, intensificando o regime das
hipocrisias farisaicas; os seguidores do “Caminho” aproximavam-se novamente das
sinagogas, fugiam dos gentios, submetiam-se, rigorosamente, aos processos da
circuncisão. Onde a liberdade do Cristo? Onde as vastas esperanças que o seu
amor trouxera à Humanidade inteira, sem exclusão dos filhos de outras raças?
Concordavam em que se fazia indispensável a mar, trabalhar, esperar; entretanto,
como agir no âmbito de forças tão heterogêneas? Como conciliar as grandiosas
lições do Evangelho com a indiferença dos homens?
Abigail apertou-lhe as mãos com
mais ternura, a indicar as despedidas, e acentuou docemente:
— Perdoa!...
Em seguida, seu vulto luminoso
pareceu diluir-se como se fosse feito de fragmentos de aurora.
Empolgado pela maravilhosa
revelação, Saulo viu-se só, sem saber como coordenar as expressões do próprio
deslumbramento. Na região, que se coroava de claridades infinitas, sentiam-se
vibrações de misteriosa beleza. Aos seus ouvidos continuavam chegando ecos
longínquos de sublimes harmonias siderais, que pareciam traduzir mensagens de
amor, oriundas de sóis distantes... Ajoelhou-se e orou! Agradeceu ao Senhor a
maravilha das suas bênçãos. Daí a instantes, como se energias imponderáveis o
reconduzissem ao ambiente da Terra, sentiu-se no leito rústico, improvisado
entre as pedras. Incapaz de esclarecer o prodigioso fenômeno, Saulo de Tarso
contemplou os céus, embevecido.
O infinito azul do firmamento não
era um abismo em cujo fundo brilhavam estrelas... A seus olhos, o espaço
adquiria nova significação; devia estar cheio de expressões de vida, que ao
homem comum não era dado compreender. Haveria corpos celestes, como os havia
terrestres. A criatura não estava abandonada, em particular, pelos poderes
supremos da Criação. A bondade de Deus excedia a toda a inteligência humana. Os
que se haviam libertado da carne voltavam do plano espiritual por confortar os
que permaneciam a distância. Para Estevão, ele fora verdugo cruel; para
Abigail, noivo ingrato. Entretanto, permitia o Senhor que ambos regressassem à
paisagem caliginosa do mundo, reanimando-lhe o coração. A existência
planetária alcançava novo sentido nas suas elucubrações profundas. Ninguém
estaria abandonado, Os homens mais miseráveis teriam no céu quem os
acompanhasse com desvelada dedicação. Por mais duras que fossem as experiências
humanas, a vida, agora, assumia nova feição de harm onia e beleza eternas.
A Natureza estava calma. O luar
esplendia no alto em vibrações de encanto indefinível. De quando em quando, o
vento sussurrava de leve, espalhando mensagens misteriosas. Lufadas cariciosas
acalmavam a fronte do pensador, que se embevecia na recordação imediata de suas
maravilhosas visões do mundo invisível.
Experimentando uma paz até então
desconhecida, acreditou que renascia naquele momento para uma existência muito
diversa. Singular serenidade tocava-lhe o espírito. Uma compreensão diferente
felicitava-o para o reinício da jornada no mundo. Guardaria o lema de Abigail,
para sempre. O amor, o trabalho, a esperança e o perdão seriam seus
companheiros inseparáveis. Cheio de dedicação por todos os seres, aguardaria as
oportunidades que Jesus lhe concedesse, abstendo-se de provocar situações, e,
nesse passo, saberia tolerar a ignorância ou a fraqueza alheias, ciente de que
também ele carregava um passado condenável, que, nada obstante, merecera a
compaixão do Cristo.
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