Allan Kardec
Obras Póstumas
Preâmbulo
Os males da Humanidade provêm da
imperfeição dos homens; pelos seus vícios é que eles se prejudicam uns aos
outros. Enquanto forem viciosos, serão infelizes, porque a luta dos interesses
gerará constantes misérias.
Sem dúvida, boas leis contribuem
para melhorar o estado social, mas são impotentes para tornar venturosa a
Humanidade, porque mais não fazem do que comprimir as paixões ruins, sem as
eliminar. Em segundo lugar, porque são mais repressivas do que moralizadoras e
só reprimem os mais salientes atos maus, sem lhes destruir as causas. Aliás, a
bondade das leis guarda relação com a bondade dos homens; enquanto estes se
conservarem dominados pelo orgulho e pelo egoísmo, farão leis em benefício de
suas ambições pessoais. A lei civil apenas modifica a superfície; somente a lei
moral pode penetrar o foro íntimo da consciência e reformá-lo.
Reconhecido, pois, que o atrito
oriundo do contacto dos vícios é que faz infortunados os homens, o único
remédio para seus males está em se melhorarem eles moralmente. Uma vez que nas
imperfeições se encontra a causa dos males, a felicidade aumentará na proporção
em que as imperfeições diminuírem.
Por melhor que seja uma instituição
social, sendo maus os homens, eles a falsearão e lhe desfigurarão o espírito
para a explorarem em proveito próprio. Quando os homens forem bons, organizarão
boas instituições, que serão duráveis, porque todos terão interesse em
conservá-las.
A questão social não tem, pois,
por ponto de partida a forma de tal ou qual instituição; ela está toda no
melhoramento moral dos indivíduos e das massas. Aí é que se acha o princípio, a
verdadeira chave da felicidade do gênero humano, porque então os homens não mais
cogitarão de se prejudicarem reciprocamente. Não basta se cubra de verniz a
corrupção, é indispensável extirpar a corrupção.
O princípio do melhoramento está
na natureza das crenças, porque estas constituem o móvel das ações e modificam
os sentimentos. Também está nas idéias inculcadas desde a infância e que se
identificam com o Espírito; está ainda nas idéias que o desenvolvimento
ulterior da inteligência e da razão podem fortalecer, nunca destruir. É pela
educação, mais do que pela instrução, que se transformará a Humanidade.
O homem que se esforça seriamente
por se melhorar assegura para si a felicidade, já nesta vida. Além da
satisfação que proporciona à sua consciência, ele se isenta das misérias
materiais e morais, que são a conseqüência inevitável das suas imperfeições.
Terá calma, porque as vicissitudes só de leve o roçarão. Gozará de saúde,
porque não estragará o seu corpo com os excessos. Será rico, porque rico é
sempre todo aquele que sabe contentar-se com o necessário. Terá a paz do
espírito, porque não experimentará necessidades fictícias, nem será atormentado
pela sede das honrarias e do supérfluo, pela febre da ambição, da inveja e do
ciúme. Indulgente para com as imperfeições alheias, menos sofrimentos lhe
causarão elas, que, antes, lhe inspirarão piedade e não cólera. Evitando tudo o
que possa prejudicar o seu próximo, por palavras e por atos, procurando, ao
invés, fazer tudo o que possa ser útil e agradável aos outros, ninguém sofrerá
com o seu contacto.
Garante a sua felicidade na vida
futura, porque, quanto mais ele se depurar, tanto mais se elevará na hierarquia
dos seres inteligentes e cedo abandonará esta terra de provações, por mundos
superiores, porquanto o mal que haja reparado nesta vida não terá que o reparar
em outras existências; porquanto, na erraticidade, só encontrará seres amigos e
simpáticos e não será atormentado pela visão incessante dos que contra ele
tenham motivos de queixa.
Vivam juntos alguns homens,
animados desses sentimentos, e serão tão felizes quanto o comporta a nossa
terra. Ganhem assim, passo a passo, esses sentimentos todo um povo, toda uma
raça, toda a Humanidade e o nosso globo tomará lugar entre os mundos ditosos.
Será isto uma utopia, uma
quimera? Sê-lo-á para aquele que não crê no progresso da alma; não o será, para
aquele que crê na sua perfectibilidade indefinida.
O progresso geral é a resultante
de todos os progressos individuais; mas, o progresso individual não consiste
apenas no desenvolvimento da inteligência, na aquisição de alguns
conhecimentos. Nisso mais não há do que uma parte do progresso, que não conduz
necessariamente ao bem, pois que há homens que usam mal do seu saber. O
progresso consiste, sobretudo, no melhoramento moral, na depuração do Espírito,
na extirpação dos maus germens que em nós existem. Esse o verdadeiro progresso,
o único que pode garantir a felicidade ao gênero humano, por ser o oposto mesmo
do mal. Muito mal pode fazer o homem de inteligência mais cultivada; aquele que
se houver adiantado moralmente só o bem fará. É, pois, do interesse de todos o
progresso moral da Humanidade.
Mas, que importam a melhora e a
felicidade das gerações futuras, àquele que acredita que tudo se acaba com a
vida? Que interesse tem ele em se aperfeiçoar, em se constranger, em domar suas
paixões inferiores, em se privar do que quer que seja a benefício de outrem?
Nenhum. A própria lógica lhe diz que seu interesse está em gozar depressa e por
todos os meios possíveis, visto que amanhã, talvez, ele nada mais será.
A doutrina do "nada" é
a paralisia do progresso humano, porque circunscreve as vistas do homem ao
imperceptível ponto da presente existência; porque lhe restringe as idéias e as
concentra forçosamente na vida material. Com essa doutrina, o homem nada sendo
antes, nem depois, cessando com a vida todas as relações sociais, a
solidariedade é vã palavra, a fraternidade uma teoria sem base, a abnegação em
favor de outrem mero embuste, o egoísmo, com a sua máxima — cada um por si, um
direito natural; a vingança, um ato de razão; a felicidade, privilégio do mais
forte e dos mais astuciosos; o suicídio, o fim lógico daquele que, baldo de
recursos e de expedientes, nada mais espera e não pode safar-se do tremedal1.
Uma sociedade fundada sobre o "nadismo" traria em si o gérmen de sua
próxima dissolução.
Outros, porém, são os sentimentos
daquele que tem fé no futuro; que sabe que nada do que adquiriu em saber e em
moralidade lhe estará perdido; que o trabalho de hoje dará seus frutos amanhã;
que ele próprio fará parte das gerações porvindouras, mais adiantadas e mais
ditosas. Sabe que, trabalhando para os outros, trabalha para si mesmo. Sua
visão não se detém na Terra, abrange a infinidade dos mundos que lhe servirão
um dia de morada; entrevê o glorioso lugar que lhe caberá, como o de todos os
seres que alcançam a perfeição.
Com a fé na vida futura,
dilata-se-lhe o círculo das idéias; o porvir lhe pertence; o progresso pessoal
tem um fim, uma utilidade real. Da continuidade das relações entre os homens
nasce a solidariedade; a fraternidade se funda numa lei da Natureza e no
interesse de todos.
A crença na vida futura é, pois,
elemento de progresso, porque estimula o Espírito; somente ela pode dar ao
homem coragem nas suas provas, porque lhe fornece a razão de ser dessas provas,
perseverança na luta contra o mal, porque lhe assina um objetivo. A formar essa
crença no espírito das massas é, portanto, o em que devem aplicar-se os que a
possuem.
Entretanto, ela é inata no homem.
Todas as religiões a proclamam. Por que, então, não deu, até hoje, os
resultados que se deviam esperar? É que, em geral, a apresentam em condições
que a razão não pode aceitar. Conforme a pintam, ela rompe todas as relações
com o presente; desde que tenha deixado a Terra, a criatura se torna estranha à
Humanidade: nenhuma solidariedade existe entre os mortos e os vivos; o
progresso é puramente individual; cada um, trabalhando para o futuro,
unicamente para si trabalha, só em si pensa e isso mesmo para uma finalidade
vaga, que nada tem de definido, nada de positivo, sobre que o pensamento se
firme com segurança; enfim, porque é mais uma esperança que uma certeza
material. Daí resulta, para uns, a indiferença, para outros, uma exaltação
mística que, isolando da Terra o homem, é essencialmente prejudicial ao
progresso real da Humanidade, porquanto negligencia os cuidados que reclama o
progresso material, para o qual a Natureza lhe impõe o dever de contribuir.
Todavia, por muito incompletos
que sejam os resultados, não deixam de ser efetivos. Quantos homens não se
sentiram encorajados e sustentados na senda do bem por essa vaga esperança!
Quantos não se detiveram no declive do mal, pelo temor de comprometer o seu
futuro! Quantas virtudes nobres essa crença não desenvolveu! Não desdenhemos as
crenças do passado, por imperfeitas que sejam, quando conduzem ao bem: elas
estavam em correspondência com o grau de adiantamento da Humanidade.
Mas, tendo progredido, a
Humanidade reclama crenças em harmonia com as novas idéias. Se os elementos da
fé permanecem estacionários e ficam distanciados pelo espírito, perdem toda
influência; e o bem que hajam produzido, em certo tempo, não pode prosseguir,
porque aqueles elementos já não se acham à altura das circunstâncias.
Para que a doutrina da vida
futura doravante dê os frutos que se devem esperar, é preciso, antes de tudo,
que satisfaça completamente à razão; que corresponda à idéia que se faz da
sabedoria, da justiça e da bondade de Deus; que não possa ser desmentida de
modo algum pela Ciência. É preciso que a vida futura não deixe no espírito nem
dúvida, nem incerteza; que seja tão positiva quanto a vida presente, que é a
sua continuação, do mesmo modo que o amanhã é a continuação do dia anterior. É
necessário seja vista, compreendida e, por assim dizer, tocada com o dedo.
Faz-se mister, enfim, que seja evidente a solidariedade entre o passado, o
presente e o futuro, através das diversas existências.
Tal a idéia que da vida futura
apresenta o Espiritismo, O que a essa idéia dá força é que ela absolutamente
não é uma concepção humana com o mérito apenas de ser mais racional, sem
contudo oferecer mais certeza do que as outras. Ë o resultado de estudos feitos
sobre os testemunhos oferecidos por Espíritos de diferentes categorias, nas
suas manifestações, que permitiram se explorasse a vida extra corpórea em todas
as suas fases, desde o extremo superior ao extremo inferior da escala dos
seres. As peripécias da vida futura, por conseguinte, já não constituem uma
simples teoria, ou uma hipótese mais ou menos provável: decorrem de
observações. São os habitantes do mundo invisível que vêm, eles próprios,
descrever os seus respectivos estados e há situações que a mais fecunda
imaginação não conceberia, se não fossem patenteadas aos olhos do observador.
Ministrando a prova material da
existência e da imortalidade da alma, iniciando-nos em os mistérios do
nascimento, da morte, da vida futura, da vida universal, tornando-nos palpáveis
as inevitáveis consequências do bem e do mal, a Doutrina Espírita, melhor do
que qualquer outra, põe em relevo a necessidade da melhoria individual. Por
meio dela, sabe o homem donde vem, para onde vai, por que está na Terra; o bem
tem um objetivo, uma utilidade prática. Ela não se limita a preparar o homem
para o futuro, forma-o também para o presente, para a sociedade. Melhorando-se
moralmente, os homens prepararão na Terra o reinado da paz e da fraternidade.
A Doutrina Espírita é assim o
mais poderoso elemento de moralização, por se dirigir simultaneamente ao
coração, à inteligência e ao interesse pessoal bem compreendido.
Por sua mesma essência, o
Espiritismo participa de todos os ramos dos conhecimentos físicos, metafísicos
e morais. São inúmeras as questões que ele envolve, as quais, no entanto, podem
resumir-se nos pontos seguintes que, considerados verdades inconcussas, formam
o programa das crenças espíritas. (Obras Póstumas, Allan Kardec, 99 - CREDO
ESPÍRITA - Preâmbulo.)
(1) Lama, torpeza, degradação moral (Nota do Instituto André Luiz)
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Fé espírita no clima
da família, fonte do Espiritismo no campo social. - André Luiz
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