Descemos as escadarias e, em
frente dos muros altos, pude observar a extensão das defesas do soberbo
edifício. Aquela construção grandiosa era muito mais importante que a de
qualquer castelo antigo, transformado em fortaleza.
Novamente no exterior, podia
detalhar a visão panorâmica com mais exatidão. Reconhecia, agora, que entráramos
por um baluarte avançado, identificando a imponência da construção majestosa.
Apresentavam-se-me as linhas gerais com nitidez.
Impressionavam-me, sobretudo, as
fortificações. Via a torre de mensagem, consagrada, por certo, ao serviço de
resistência; o baluarte agudo, elevando-se acima dos fossos que deixavam
transbordar a água corrente; a torre de vigia, esbelta e alterosa. Observei o
caminho da ronda, a cisterna, as seteiras e, em seguida, as paliçadas e
barbacãs, refletindo na complexidade de todo aquele aparelhamento defensivo. E
as armas? Identificava-lhes a presença na maquinaria instalada ao longo dos
muros, copiando os pequenos canhões conhecidos na Terra. Entretanto, vi com
emoção, no cume da torre de vigia, a enorme bandeira de paz, muito alva,
tremulando ao vento como largo penacho de neve...
O administrador percebeu a
estranheza que se apossara de Vicente e de mim.
— Já sei a impressão que a nossa
defesa lhes causa — disse Alfredo, detendo-se para explicar.
Fixando-nos com o olhar muito
lúcido, continuou:
— Naturalmente, não imaginavam
necessárias tantas fortificações. Conforme vêem, nossa bandeira é de concórdia
e harmonia; no entanto, éimprescindível considerar que estamos em serviço que
precisaremos defender, em qualquer circunstância. Enquanto não imperar a lei
universal do amor, é indispensável persevere o reinado da justiça. Nosso Posto
está colocado, aqui, igualmente, como “ovelha em meio de lobos”, e, embora não
nos caiba efetuar o extermínio das feras, necessitamos defender a obra do bem
contra os assaltos indébitos. As organizações dos nossos irmãos consagrados ao
mal são vastíssimas. Não admitam a hipótese de serem, todos eles, ignorantes ou
inconscientes. A maioria se constitui de perversos e criminosos. São entidades
verdadeiramente diabólicas. Não tenham disso qualquer dúvida.
— Deus meu! — exclamou Vicente,
admirado — mas porque se organizam deliberadamente para o mal? Não sabem,
porventura, que todos os patrimônios universais pertencem à Majestade Divina?
Não reconhecem o Soberano Poder?
— Ah! meu amigo — falou Alfredo
em tom grave —, fiz as mesmas perguntas quando aqui cheguei pela primeira vez.
As respostas que tive foram incisivas e concludentes. Poderíamos, Vicente,
formular na Crosta as mesmas interrogações. Os criminosos que fazem as vítimas
da guerra, os exploradores da economia popular, os avarentoS misérrimos, os
sedentos de injustificado predomínio e os vaidosos cheios de fatuidade sabem,
tão bem quanto os nossos adversários daqui, que tudo pertence a Deus, que o
homem é simples usufrutuário dos divinos bens. Não ignoram que os antepassados
foram chamados à verdade e a contas pela morte, e que eles seguirão os mesmos
caminhos; entretanto, atormentam-se na Crosta como verdadeiros loucos,
amontoando possibilidades para a ruína e abusando das oportunidades mais
santas. Aqui se verifica a mesma coisa. Querem dominar antes de se dominarem,
exigem antes de dar e entram em perene conflito com o espírito divino da lei.
Estabelecido o duelo entre a fantasia deles e a verdade do Pai, resistem às
corrigendas do Senhor e transformam-se, esses desventurados, em verdadeiros
gênios da sombra, até que, um dia, se decidam a novos rumos.
Intrigado com as profundas
observações, perguntei:
— Mas, como explicar as bases de
semelhante atitude? Na Terra, compreendemos certos enganos, mas aqui...
O generoso interlocutor não me
deixou terminar e prosseguiu:
— Na Crosta, nossos irmãos menos
felizes lutam pela dominação econômica, pelas paixões desordenadas, pela
hegemonia de falsos princípios. Nestas zonas imediatas à mente terrestre, temos
tudo isso em identidade de condições. Entre as entidades perversas e
ignorantes, há cooperativas para o mal, sistemas econômicos de natureza
feudalista, baixa exploração de certas forças da Natureza, vaidades tirânicas,
difusão de mentiras, escravização dos que se enfraquecem pela invigilância,
doloroso cativeiro dos Espíritos falidos e imprevidentes, paixões talvez mais
desordenadas que as da Terra, inquietações sentimentais, terríveis
desequilíbrios da mente, angustiosos desvios do sentimento. Em todo o lugar,
meu amigo, as quedas espirituais, perante o Senhor, são sempre as mesmas,
embora variem de intensidade e coloração.
— Mas... e as armas? — perguntei
— acaso são utilizadas?
— Como não? — disse Alfredo,
pressuroso — não temos balas de aço, mas temos projetis elétricos.
Naturalmente, a ninguém atacaremos. Nossa tarefa é de socorro e não de
extermínio.
— No entanto — aduzi, sob forte
impressão —, qual o efeito desses projetis?
— Assustam terrivelmente —
respondeu ele, sorrindo — e, sobretudo, demonstram as possibilidades de uma
defesa que ultrapassa a ofensiva.
— Mas apenas assustam? — tornei a
interrogar.
Alfredo sorriu mais
significativamente e acrescentou:
— Poderiam causar a impressão de
morte.
— Que diz! — exclamei com
insofreâvel espanto.
O administrador meditou alguns
instantes, e, ponderando, talvez, a gravidade dos esclarecimentos, obtemperou:
— Meu amigo! meu amigo! se já não
estamos na carne, busquemos desencarnar também os nossos pensamentos. As
criaturas que se agarram, aqui, às impressões físicas, estão sempre criando
densidade para os seus veículos de manifestação, da mesma forma que os
Espíritos dedicados à região superior estão sempre purificando e elevando esses
mesmos veículos. Nossos projetis, portanto, expulsam os inimigos do bem através
de vibrações do medo, mas poderiam causar a ilusão da morte, atuando sobre o
corpo denso dos nossos semelhantes menos adiantados no caminho da vida. A morte
física, na Terra, não é igualmente pura impressão? Ninguém desaparece. O
fenômeno é apenas de invisibilidade ou, por vezes, de ausência. Quanto à
responsabilidade dos que matam, isto é outra coisa. E além desta observação,
que é da alçada da Justiça Divina, temos a considerar, igualmente. que, nesta
esfera, o corpo denso modificado pode ressurgir todos os dias, pela matéria
mental destinada à produção dele, enquanto que, para obter o corpo físico,
almas há que trabalham, por vezes, durante séculos...
Vicente e eu caláramos,
estupefatos.
Alfredo sorriu serenamente e
perguntou, bem humorado:
— Vocês conhecem a lenda hindu da
serpente e do santo?
Ante a nossa expressão negativa,
o administrador continuou:
- Contam as tradições populares
da Índia que existia uma serpente venenosa em certo campo. Ninguém se
aventurava a passar por lá, receando-lhe o assalto. Mas um santo homem, a
serviço de Deus, buscou a região, mais confiado no Senhor que em si mesmo. A
serpente o atacou, desrespeitosa. Ele dominou-a, porém, com o olhar sereno, e
falou: — Minha irmã, é da lei que não façamos mal a ninguém. A víbora
recolheu-se, envergonhada. Continuou o sábio o seu caminho e a serpente
modificou-se completamente. Procurou os lugares habitados pelo homem, como
desejosa de reparar os antigos crimes. Mostrou-se integralmente pacífica, mas,
desde então, começaram a abusar dela. Quando lhe identificaram a submissão
absoluta, homens, mulheres e crianças davam-lhe pedradas. A infeliz recolheu-se
à toca, desalentada. Vivia aflita, medrosa, desanimada. Eis, porém, que o santo
voltou pelo mesmo caminho e deliberou visitá-la. Espantou-se, observando
tamanha ruína. A serpente contou-lhe, então, a história amargurada. Desejava
ser boa, afável e carinhosa, mas as criaturas perseguiam-na e apedrejavam-na. O
sábio pensou, pensou e respondeu após ouvi-la:
— Mas, minha irmã, houve engano
de tua parte. Aconselhei-te a não morderes ninguém, a não praticares o
assassinio e a perseguição, mas não te disse que evitasses de assustar os maus.
Não ataques as criaturas de Deus, nossas irmãs no mesmo caminho da vida, mas
defende a tua cooperação na obra do Senhor. Não mordas, nem firas, mas é
preciso manter o perverso a distância, mostrando-lhe os teus dentes e emitindo
os teus silvos.
Nesse momento, Aniceto sorriu de
maneira expressiva.
O administrador fez longa pausa e
concluiu:
— Creio que a fábula dispensa
comentário.
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