De Darcy Ribeiro para Lula: CHORE HOJE, LUTE AMANHÃ
Psicografia de FERNANDO BRITO
24/01/2018
Fonte: Tijolaço
Meu caro Lula,
Outra vez eu me sirvo deste menino que
faz o tal Tijolaço para ser meu cambono.
Medíocre, é verdade, mas é quem está à mão, fazer o quê?
Para ver se revolvia a sua terra pouco
fértil, mandei-lhe uma emanação, aqui do éter, para que ouvisse o que falei no
enterro do Gláuber Rocha. Claro que não porque você esteja morto, como eu e
ele, mas porque te quero sugerir que, como ele, esta noite, chore.
Eu disse lá: “O
Gláuber chorava, chorava convulsivamente. O Gláuber chorava a dor que todos
devíamos chorar, a dor de todos os brasileiros. O Gláuber chorava as
crianças com fome, O Gláuber chorava um país que não deu certo, o Gláuber
chorava a brutalidade, a mediocridade, a estupidez”…
Pois então, meu caro Lula, sinta-se
livre hoje para chorar. Não por você, que sei, por já ter tido a sua idade e um
câncer como você, sei que não liga mais para si mesmo. Nem eu, que me amava
tanto e tão profundamente, dava muita importância a mim, a não ser pelo que
podia fazer, dizer e escrever. E nesta ordem.
Chore, Lula, chore. Mas chore só hoje.
Que amanhã, como você se acostumou, é
dia de ir cedo para a fábrica. Porque é muito parecido, não é? Moldar ideias é
como moldar metais: é duro, cheio de asperezas e sujeito a acidentes que nos
machucam. E é pior, até, porque não tem descanso, nem fim de semana, e a falta
de uma rede nos faz doer as costas de macunaímas.
Lula, os estatutos desta gafieira onde
me encontro – não sei se é celeste ou infernal, porque não entendo um céu sem
pecados e nem um inferno sem virtudes – impedem-me de te revelar o
futuro. Posso apenas te dizer que não é fácil como o de quem morre e vira
santo, porque depois que a gente desencarna, até os cínicos nos aplaudem.
Quando a gente está vivo, nos acusam de
tudo. A mim, usaram uma foto para dizer que eu me aliava a banqueiros do jogo
do bicho. Como é que eu ia ser Secretário de Cultura do Rio de Janeiro, fazer o
Sambódromo e cuidar do Carnaval sem encontrar os bicheiros das Escolas de
Samba?
Nos limites em que Deus controla minha
língua – sou justo, não me reprime nos diálogos que travamos, porque Deus é
onisciente mas aceita a dúvida, ao contrário dos bobalhões togados que te
condenaram hoje, posso te contar só um pouquinho.
Posso contar, apenas, o que já escrevi,
e mando este menino que cavalgo mentalmente agora, vá buscar no meu “O Povo
Brasileiro”:
Cada vez que um político nacionalista
ou populista se encaminha para a revisão da institucionalidade, as classes
dominantes apelam para a repressão e a força.
Eu mesmo sofri isso, como auxiliar de
Jango. Só me deixaram voltar aos Brasil quando acharam – como vão achar você –
prestes a morrer de um câncer que me levou um pulmão. Por isso, te digo, o que
é ser preso perto de estar na iminência da morte?
Não é a primeira vez que escrevo sobre
você. A primeira foi quando ainda estava por aí, em 1989, e desabafei:
Estou me cansando de ouvir falar de
Lula com descaso. Qualquer advogadinho idiota, porque formado, se acha melhor
que ele, mais preparado para governar. Um intelectual desses que leu meia dúzia
de livros ou escreveu qualquer bobagem, um tecnocrata que desempenhou bem ou
mal algum cargo, todos se acham melhores que Lula e falam dele sem sombra de
respeito. Por que? Essa gente pensa que o exercício do poder, em postos de
alta responsabilidade, cabe a uma categoria particularíssima de pessoas, na
qual não incluiriam jamais um ex-operário ou um líder sindical, ainda que muito
bem-sucedido.
Não errei, não é?
Nem eu nem você quisemos ser mártires –
e eles, os grandões, também não querem, porque não há mídia que seja capaz de
vencer mártires.
Mas estes caras são tão imbecis, tão
idiotas, que nos fazem isso. Como eles são filhos e netos de senhores de
escravos, acham que nos atar ao tronco e vergastar, vai encher de medo a
senzala.
Na hora, sim, que ninguém é bobo de
querer o chicote no lombo, mas lhes vai endurecendo o couro das mentes e
deixando que elas não aceitem mais a servidão.
Então, Lula, chore esta noite e acorde
amanhã livre de rancores. Como um negro fugido, que os capitães de mato querem
enjaular, seja sabido.
Eles verão um nordestino, que mal
escapou de ser gabiru, virar ainda mais gigante.
Agora, por favor, não me obrigue mais a
estas comunicações psicográficas e deixe que eu as reserve para a Dona Diva,
aquela negra linda da Feira Literária de Parati, que é linda e 20 e tantos anos
mais nova que eu -que a Catherine Deneuve nos abençoe.
Quando eu mandar, daqui, uma edição
revisada de O Povo Brasileiro, prometo,
cuido do que você é, a metamorfose ambulante com que se define.
Mas, antes, estou observando a
borboleta voar.
Darcy Ribeiro
Fonte:
Tijolaço
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